A Verdadeira Educação Liberta (parte 2)

Em nosso último artigo discutimos como um currículo de artes liberais pode ser a tão desejada solução para o problema da educação. E para tanto recorremos a um brilhante artigo de Rollin A. Lasseter, no qual ele propõe, nadando contra a corrente, que a resposta não está nas tecnologias e metodologias do futuro, mas sim na sabedoria do passado. Pois bem, nessa segunda parte continuaremos a entender melhor o que são e como funcionam as artes liberais. Dessa vez focando no Quadrivium.


Rollin A. Lasseter, Catholic Answers| Tradução: Equipe Instituto Newman


Avance para Conceitos Abstratos

O quadrivium compreende aquelas artes que treinam a mente para ordenar as abstrações, enquanto o trivium ordena conceitos concretos. As artes da numeracia, ou do número, são ordenamentos de relações, ou melhor, proporções. Como os matemáticos John e Theresa Kohl escreveram, “assim como as três artes da fala estão voltadas para a elevação dos homens à maturidade política na terra, as artes matemáticas elevam os homens de preocupações mundanas para extra-mundanas” (A Palestra do Quadrivium). As relações das abstrações — das coisas intangíveis — são as relações das coisas da mente. E, desde os tempos antigos, foi mantido que o número é a linguagem universal para todas as abstrações. Cada uma dessas quatro “estradas” do número tem sua própria gramática, lógica e retórica, isso porque o estudo do quadrivium era realizado após o domínio do trivium, na educação antiga.

Dominar Quantidades

Tratemos da aritmética primeiro, pois dela depende muito do que pode ser dito sobre a geometria, a astronomia e a música. A arte liberal da aritmética não é a matéria escolar primária que todos nós aprendemos (em graus diferentes de domínio), e que os professores da época chamavam honestamente de “contas”. Ela é a ordenação das relações de quantidade, é a disposição da contagem, e as relações da substância.

A antiga arte da aritmética era muito mais do que simples cálculos e equilíbrios de contas bancárias, era a busca da estrutura e ordem da realidade representada pelo número abstrato. Ora, além de uma operação de soma, o que é dois mais dois? Ou o próprio número dois, o que é dois? O que significa multiplicar algo? Dividir? Que atividade está realmente ocorrendo quando um computador de automóvel decide a direção com base na quilometragem e coordenadas da bússola? O equivalente de hoje é encontrado com mais clareza na matemática superior da álgebra linear e do cálculo, na teoria da probabilidade e na pesquisa de construção de modelos. A aritmética considera a inter-relação de contagens, por mais abstrusas e intangíveis que sejam.

Conceber o invisível

A arte liberal da geometria, que atingiu seu apogeu no mundo antigo com os Elementos de Euclides e está hoje experimentando outro avanço de insights na topologia e na análise vetorial, trata-se da ordenação das relações no espaço e no tempo. É a arte de conceber o invisível, de imaginar coisas além do toque e da visão. Como um ponto se relaciona com outro ponto? Ou uma linha com outra linha? O estudo da ordem do espaço e da relação do tempo com os espaços liberta a mente da limitação dos sentidos. Pensar numericamente é pensar em abstrações, em realidades intelectuais.

Medir e prever movimento

Da mesma forma, a astronomia, que para os antigos significava o estudo e a medição do movimento das estrelas visíveis, é a ordenação das relações de todas as coisas em movimento. Para os antigos, o movimento dos corpos celestes era o conjunto mais regular e mensurável de coisas em movimento, e as configurações sempre mutáveis das estrelas e planetas, do sol e da lua, e as estações e marés resultantes destas, deram origem ao estudo do próprio movimento e, posteriormente, ao estudo da mudança. A mudança é esse movimento das coisas no tempo, bem como no espaço, que Aristóteles chamou de física.

O cálculo moderno e a física tratam dessas relações mais do que qualquer outra arte, mas não seria muito impreciso sugerir que certas ciências “suaves”, como a estatística, a antropologia social e a previsão política, têm a mesma busca pela ordem das relações das coisas em movimento. A precisão de descrição e previsão das ciências “suaves”, no entanto, não se compara à dos físicos, pois seus objetos estão em maior movimento do que os objetos sensoriais da física.

Encontrar a verdade na estrutura

Finalmente, a música, a harmonia, que para os antigos era o estudo das relações de sons, movimentos corporais e proporções visuais, é a ordenação das relações de intensidade ou magnitudes no espaço e no tempo. A disposição harmoniosa de uma sala de estar, o despejar perfeito de chás, o equilíbrio de elementos de design e função que é o sucesso arquitetônico, esses são todos exemplos da arte liberal da música. Dominar um instrumento musical ou cantar em um coral é a maneira de aprender a gramática, a lógica e a retórica da harmonia.

Mas a música de qualquer assunto, o equilíbrio e a beleza de suas várias partes, é o reconhecimento de sua estrutura interna e verdade. Elegância é a harmonia das partes mais essenciais. A harmonia é a beleza, a terceira das transcendências, e segundo muitos pensadores antigos e medievais, o caráter de uma das pessoas de Deus.

Vemos então, como o quadrivium segue o trivium, à medida que a mente é elevada além do óbvio e do imediato, para preocupações de últimas verdades e transcendências. Quase tão logo aprendemos a contemplar uma situação ou evento em suas proporções e relações, alcançamos a liberação da visão espiritual. Estamos livres para escolher corretamente entre o elegante e o deselegante, o verdadeiro e o falso.

O peso da liberdade

Usamos o termo liberdade com frequência e, muitas vezes, de forma incorreta. A verdadeira liberdade não significa — como a sociedade está sempre nos dizendo — ser livre de todas as restrições para agir de acordo com qualquer capricho. Significa mais, até mesmo, do que a liberdade política que desfrutamos. A liberdade, como nossas avós educadas nas artes liberais sabiam, significa responsabilidade e autoconsciência. Libertas. Significa assumir o peso, o liber, de nossos deveres e obrigações e as consequências de nossas ações. Somente um homem ou mulher livre pode fazer isso. E para aceitar esse peso, precisamos saber: quais são minhas responsabilidades? Quais podem ser as consequências das minhas ações? Para onde minhas escolhas podem me levar? Quais são as alternativas? E, acima de tudo, significa ser capaz de responder à pergunta: Quem sou eu?

Nossos antigos mestres da oração dizem que o principal obstáculo à oração é que raramente sabemos quem está orando, qual dos “eus” está no controle naquele momento, e se o que estamos pedindo na oração é realmente o que o coração necessita. O homem livre sabe quem ele é, sabe o que quer, sabe o que pede. Assim, ele reza livremente.

Mais que um currículo

Conhecer quem eu sou é o esforço de anos. Conhecer o mundo ao meu redor também é o esforço de anos — de educação e habilidades aprendidas na escola. A liberdade é o autoconhecimento, o conhecimento do mundo e o conhecimento humano — é a verdade. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32).

É por isso que eu recomendo uma educação em artes liberais como base necessária para uma verdadeira reforma de nossas escolas. Aprender as estruturas da ordem, seus princípios governantes, sua comunicação com os outros, aprender as relações que a mente percebe no mundo dos sentidos, da quantidade, do espaço, do movimento e da magnitude harmoniosa, levará a próxima geração mais longe do que todas as conexões da Internet ou incentivos multiculturais para autoestima que nossos políticos e autoridades poderiam criar. Essas artes devem ser novamente os guias e a razão para nossas empreitadas educacionais.

Não se trata de defender um currículo “clássico” de solução rápida, ou simplesmente um regresso ao básico, ou mesmo o currículo dos grandes livros, mas antes uma recuperação da atitude e da abordagem que uma educação em artes liberais, quer nas escolas quer nas universidades, deveria representar. Devemos recuperar as artes de ordenação que conferem domínio sobre a informação.

Rumo ao céu


E, o que queremos ao final do nosso ensino? Simples, queremos uma alma — honesta, moral, saudável, competente, confiante, aberta, inquisitiva, zelosa e reverente: o que costumava se chamar de um bom católico e um cidadão honesto. Queremos um ser humano preparado academicamente para o próximo nível de sua educação, aberto para aprender mesmo que ainda não esteja totalmente apaixonado pelo cansativo processo de enfiar fatos e habilidades no cérebro, e espiritualmente preparado para enfrentar os desafios do mundo moderno e sua própria situação e aspirações com coragem, autodisciplina, empatia e humildade. Queremos crianças que possamos admirar e amar. E, acima de tudo, queremos que elas alcancem o céu.

NOTAS DE ESCLARECIMENTO

A inexatidão é uma mentira

Ninguém verdadeiramente deseja voltar aos dias da palmatória e dos gorros de burro, mas as religiosas e as jovens mulheres da fronteira que dirigiam suas escolas de uma única sala (tão presentes no folclore e na literatura americana) sabiam o que funcionava. Elas exigiam trabalho árduo, ortografia precisa, e cálculos como preço para uma nota, a base do auto respeito, o sine qua non da “autoestima”.

Temos que insistir na necessidade da exatidão porque a alfabetização e a numeracia são a exatidão da escrita e do cálculo. Dorothy L. Sayers gostava de citar a frase de seu colega cristão de Oxford, Charles Williams: “O inferno é inexato”. O antigo ditado, “O diabo é o pai da mentira”, pode explicar parte do que deu errado em nossas escolas desde que a antiga insistência na exatidão deu lugar à autoestima.

A inexatidão é mentir, para os outros e para si mesmo. O hábito da exatidão se reflete no hábito da auto-honestidade, da humildade, e de acertar os fatos. Acreditamos que existe uma verdade e, por isso, não podemos ser negligentes com as pequenas verdades. Professores e os próprios estudantes devem tomar uma posição firme em relação à exatidão, ou perderão o paraíso.

A Conexão entre Educação e Oração

A chave para uma concepção cristã dos estudos é a percepção de que a oração consiste em atenção. A oração nada mais é do que a orientação de toda a atenção de que a alma é capaz de dirigir a Deus. A qualidade da atenção conta muito na qualidade da oração. Calor no coração não pode compensar isso. Claro, os exercícios escolares desenvolvem apenas um tipo inferior de atenção. No entanto, eles são extremamente eficazes em aumentar o poder de atenção que estará disponível no momento da oração.

Em outras palavras, mesmo que não tenhamos aptidão ou gosto natural pela geometria, nossa faculdade de atenção será desenvolvida à medida que lutamos com seus problemas. Na verdade, lutar com um assunto desagradável é quase uma vantagem. Esforço genuíno nunca é desperdiçado. Sempre tem seu efeito no plano espiritual e, consequentemente, no plano inferior da inteligência, pois toda luz espiritual ilumina a mente.

Hoje: Não é Educação…

Os educadores de hoje distinguem cinco abordagens principais para o currículo atualmente aceito nas escolas americanas. A primeira é chamada pelos educadores de “racionalismo acadêmico” (eles evitam usar o termo artes liberais). Esta abordagem inclui todos os currículos que poderíamos chamar de currículos de artes liberais, enfatizando a aprendizagem e domínio de um conjunto de conhecimentos e habilidades derivados do passado, um amor pelo bem e pela verdade, e a formação de caráter necessária para realizar esse domínio.

As outras quatro abordagens — cujos nomes são bastante elaborados — são: o desenvolvimento de processos cognitivos, a instrução como tecnologia, a reconstrução social e a auto-atualização. Essas novas abordagens são as noções dominantes nas escolas públicas e paroquiais de hoje, e elas mantêm a aparência das matérias e sequências do sistema de artes liberais reformado do nosso passado, porém não o são. Elas mudam a ênfase de tal forma que alteram o resultado final e o propósito da empreitada, às vezes além do reconhecimento.

mas Engenharia Social

Essas abordagens deslocam a ênfase da conquista de habilidades em busca da verdade para a formação deste ou daquele tipo de caráter considerado útil no momento para essa ou aquela concepção passageira de utopia. As novas abordagens são, em outras palavras, formas de engenharia social, não de formação intelectual e espiritual. Sua preocupação não é adquirir habilidades e conhecimento, ou autocontrole, mas a formação (ou deformação) da personalidade e do caráter do aluno segundo um modelo preconcebido e pré construído pelas autoridades. São métodos não de educação, mas de imposição da vontade do professor sobre o aluno. Não creio que eu esteja interpretando mal sua natureza ou sua intenção.

Lamentavelmente, essas abordagens são mais imediatamente gratificantes para muitos professores, oferecendo o que parecem ser resultados mensuráveis (levando a uma constante redução das expectativas), e um tipo de recompensa emocional, uma intimidade espiritual com os alunos que a antiga exigência de domínio, com sua infeliz necessidade de exercícios repetitivos e outras tarefas árduas, não poderia esperar proporcionar.


 

Rollin A. Lasseter foi editor geral do Catholic Schools Textbook Project ( Projeto de livros didáticos para escolas católicas) e autor de All Ye Lands, World Geography and Cultures (Todas as Terras, Geografia Mundial e Culturas) e The Cast of Valor (A estrutura do valor), uma coletânea de suas poesias. Ele foi membro do corpo docente de inglês da Universidade de Dallas até sua aposentadoria. O Dr. Lasseter faleceu em 2008.

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