A Verdadeira Educação Liberta (parte 1)

Como resolver os problemas da educação? Com mais investimento, com novas metodologias, ou com tecnologias mais modernas. Ora, talvez a solução esteja nas práticas do passado e não do futuro. No artigo abaixo, Rollin A. Lasseter argumenta que a educação clássica baseada nas sete artes liberais é a solução para o problema. E para tanto, ele explica com precisão o que são o Trivium e o Quadrivium. Por se tratar de um artigo longo decidimos dividi-lo em duas partes. Nessa primeira vamos compreender o que é o Trivium.  
Rollin A. Lasseter, Catholic Answers| Tradução: Equipe Instituto Newman


Um cenário preocupante 

Infelizmente, [nos Estados Unidos] já estamos nos acostumando a ver crianças atirando em seus professores e colegas, e a testemunhar abusos. E já não nos surpreendemos ao ver estudantes saindo do ensino médio incapazes de ler, e ao ver pais processando escolas, ou indignados rejeitando a imposição de tarefas de casa como uma violação de seu tempo limitado com seus órfãos em casa. Não nos espanta mais ouvir que nossas escolas secundárias e universidades oferecem créditos pelo estudo de “gangsta rap” [1] e “harlequin romances” [2].

Há duzentos anos, nossas escolas e universidades abandonaram o antigo currículo de artes liberais em favor de uma abordagem de disciplinas, habilidades e informações. E agora nossas escolas estão afogando os jovens em marés de informações. Assim, somente os mais obstinados sindicalistas do ensino podem negar que elas estejam atrasadas para uma reforma essencial. Mas a forma que essa reforma tomará nas próximas décadas determinará a direção da república e da Igreja nos séculos por vir.

Os alunos de hoje em breve se tornarão professores, empresários e diretores; a maioria deles se tornará pais e, portanto, “educadores primários” de seus filhos. Logo, é incumbência nossa levar a sério a educação que transmitimos às gerações futuras.

A palavra “educação” vem do Latim educare, que significa trazer para fora. Portanto, a verdadeira educação católica nos retira da ignorância, do isolamento e de nós mesmos em direção à humanidade, ao conhecimento e a Deus. Nossas escolas devem estar dedicadas a conduzir as almas dos alunos para fora de si mesmos, transmitindo-lhes as artes do aprendizado.

Libertar-se da ignorância e do apetite

As artes do aprendizado são as artes liberais. Embora usemos o termo frequentemente e muitos de nós tenhamos diplomas em artes liberais, a maioria de nós tem apenas uma compreensão vaga do que elas são. As artes liberais são aquelas habilidades (técnicas, ferramentas) necessárias para ser um homem ou mulher livre, homo liberalis. Elas nos libertam da escravidão da ignorância e, especialmente, da escravidão dos nossos apetites — nossos caprichos, impulsos e desejos que nos impulsionam a ouvir os últimos anúncios e comprar as últimas modas. Dessa forma, as artes liberais são aquelas habilidades que libertam homens e mulheres diante de Deus.

As artes liberais não se tratam tanto de ensinar coisas, mas de ensinar as habilidades para aprender coisas. Elas não são tanto o ensino da cultura literária quanto o ensino da habilidade de adquirir essa cultura literária. Claramente, as escolas devem exigir o domínio de um conjunto de informações de seus alunos, mas “os fatos são coisas estúpidas a menos que sejam colocados em contato com um princípio organizador”, como o naturalista do século XIX Louis Agassiz enfatizou para seus alunos. O objetivo real é transmitir a habilidade de adquirir ainda mais informações fora da sala de aula.

Habilidades, não disciplinas

Provavelmente, a maioria dos formados em artes liberais ficaria envergonhada se fosse questionada sobre elas, ainda mais se lhes pedirmos para definir o que são. Os currículos que estamos acostumados a chamar de “artes liberais” ou de “educação clássica” são atualmente uma concatenação de disciplinas que compreendem as ciências humanas e sociais, com a inclusão relutante das ciências exatas como parentes indesejados. O próprio nome artes liberais agora sofre com a degradação do adjetivo liberal, tornando até mesmo as faculdades de artes liberais vagamente suspeitas para o público em geral.

As artes liberais foram primeiramente distinguidas e sistematizadas por mestres romanos. Elas se tornaram a estrutura de todas as escolas na Europa até o último século. Elas são compostas por dois grupos: o trivium e o quadrivium. O trivium são os “três caminhos” para o aprendizado que transmitem a alfabetização, nele estão inclusos a gramática, a lógica e a retórica. Já o quadrivium são os “quatro caminhos” que transmitem a numeracia, nele estão inclusos a aritmética, a geometria, a astronomia e a música.

Aos ouvidos modernos, essa lista soa ou muito primitiva para ser levada a sério ou muito arcaica para ser possível. Isso porque pensamos nas artes liberais em termos de disciplinas, com as que estudamos na escola. Mas as artes liberais abrangem todas as disciplinas, tanto as humanidades quanto as ciências. Elas são artes, as técnicas, habilidades e abordagens, a intuição com a qual as disciplinas são abordadas e dominadas. Preparam a mente para usar a informação em qualquer disciplina para sua maior operação — o aprendizado. Portanto as artes liberais são de fato artes.

Não há nada de trivial no Trivium

Como já se mencionou, o trivium inclui a gramática, a lógica e a retórica. O seu objetivo é o alcance da alfabetização, a habilidade de lidar com letras e as palavras que essas letras transmitem. É do trivium que temos nossa palavra trivial, significado associado ao aprendizado infantil, mas essas habilidades dificilmente podem ser chamadas de triviais considerando o quão crucial é que lidemos inteligentemente com o constante bombardeio de anúncios, propaganda e deformação da verdade.

A seguir, o quadrivium objetiva alcançar a numeracia, a habilidade de entender número, tanto de forma prática em cálculos, quanto filosoficamente em medições e contabilização das relações do ser, da relatividade e da relação. Os estudantes aprendem a aplicação e o significado dos números, a conexão entre aritmética e geometria simples com questões maiores e problemas da natureza do mundo físico. Eles aprendem o movimento e seus padrões a partir dos movimentos das estrelas, e as técnicas para medir grandes distâncias e aproximar espaços. Por fim, eles aprendem teoria musical, o significado de relações e intervalos, e a arte de descobrir harmonia no mundo ao seu redor.

O quadrivium leva a mente ao reino abstrato e hipotético que os números nomeiam, afastando-se do particular e do concreto, e conduz a alma em direção ao divino imaterial e eterno.

Nas sete artes liberais, o mundo cristão tinha um sistema de treinamento dos jovens nas habilidades de pensamento. Sobre esse antigo ensino, Dorothy L. Sayers escreveu em seu livro “As Ferramentas Perdidas do Aprendizado”: “O único verdadeiro objetivo da educação é simplesmente este: ensinar os homens a aprender por si mesmos; e qualquer instrução que falhe nisso é esforço desperdiçado”.

Primeiro, aprende-se sobre a ordem

Primeiramente, todo aprendizado começa dominando a gramática de qualquer assunto. A gramática é aprender a língua, sua estrutura, sua natureza, como ela é construída e por que funciona da maneira que funciona. Contudo, mais essencialmente, a gramática também é aprender a entender e responder à ordem em todas as coisas. É aprender a reconhecer a ordem, a colocar as inúmeras coisas da experiência em ordem, a perceber a ordem subjacente nas complexidades da experiência. Isso requer aprender sobre a linguagem, esta faculdade caracteristicamente humana que usamos para interpretar o mundo. Também requer aprender sobre o tesouro de ideias que nossa própria língua preservou através das gerações, e guardou para ser nossa herança.

No passado, a língua na qual os estudantes praticavam a arte da gramática era, é claro, o Latim, a língua da Igreja, da lei, da diplomacia, do melhor da literatura e da ciência. Acreditava-se que o Latim seria como a matéria-prima onde o jovem aprendiz poderia praticar e, eventualmente, passaria para sua própria língua vernacular, de modo que ele estaria tão pronto e capaz de construir seu mobiliário mental em inglês, espanhol ou alemão, quanto era em Latim.

As crianças aprendiam a ler com o Latim, para que pudessem ler as escrituras, as orações, as ideias de estudiosos estrangeiros e as leis de seu próprio país igualmente. A gramática, a ordem de uma língua, também significava aprender a estrutura, o significado e a história da literatura dessa língua, então estudos de literatura e história eram parte da arte da gramática. Cálculos simples, as quatro operações, tabelas de somas e divisões, histórias e canções da tradição, todos os dados básicos da “literacia cultural”, eram considerados o conteúdo da arte da gramática. Assim, enviávamos nossos filhos para “escolas de gramática”.

Aprender a “ordenar” todas as coisas

A gramática de uma língua é a sua estrutura, ordem, pressupostos, história e conhecimento fundamental. Estamos usando a gramática quando o conteúdo é aprendido como ordem, e colocado em sua devida ordem, como a verdade e a beleza do mundo em que vivemos, e as “leis” da natureza das coisas. Assim, há uma “gramática” para cada habilidade ou assunto que tentamos aprender. Inclusive, mesmo depois que transformou-se o antigo sistema do trivium na forma moderna, recordou-se por muito tempo que nos primeiros anos de escolaridade devemos transmitir os fundamentos, a ordem e a estrutura dos assuntos. 

As artes liberais são as ferramentas para encontrar padrões e ordenar os detalhes de qualquer assunto. Todos os assuntos, desde poesia até matemática, tanto o basquetebol quanto as línguas, têm sua gramática, a ordenação correta de seus primeiros princípios e estruturas, seu corpo básico de dados e suas habilidades fundamentais de desempenho. A gramática do basquetebol consiste em aprender a passar, driblar, arremessar na cesta e cooperar com os companheiros de equipe.

A gramática da matemática consiste em aprender a contar, reconhecer sistemas de base dez, ou seis, ou dois, etc., dominar as funções e permutações possíveis — adição, subtração, multiplicação, divisão — e memorizar as tabelas de fatos matemáticos. Portanto, a ordenação correta de qualquer estudo começa reconhecendo sua gramática, o que é fundamental para aquele assunto, e qual é a sua ordem de estrutura.

Depois salta-se para a lógica

Da mesma forma, todos os assuntos têm sua própria lógica, as leis de coerência, identidade e consequência inerentes a esse campo. Por exemplo, a lógica do futebol envolve a escolha de jogadas, dadas as dimensões relativas e as habilidades das equipes. Enquanto, a lógica da literatura reside nas possibilidades e limitações nas estruturas de gênero, forma e figura, inerentes ou intencionais. A lógica de uma composição clássica [3] encontra-se nas necessidades de harmônicos e possíveis permutações melódicas nas interações das melodias criadas por vários instrumentos. Um sábio uma vez disse que a lógica da história é a cronologia — tempo e sequência determinando causa e efeito.

O deleite de unir a ordem à lógica

Finalmente, todos os assuntos também possuem sua retórica — a arte que os unificados e os torna agradáveis, a arte da persuasão, a arte do estilo. Ora, a retórica da matemática é vista na resolução de problemas, na precisão e elegância da prova. Já a retórica do futebol está no jogo em campo, a forma como uma jogada é efetivamente executada nas necessidades do momento e nas chances e mudanças do inesperado.

Portanto, o trivium é um esquema para aprender a natureza e a prática das iniciativas humanas: estruturas, princípios e prática. E dominar o trivium é dominar as coisas que podem ser nomeadas por linguagem e palavras, é aprender a pensar e falar com precisão e elegância. A gramática, a lógica e a retórica criam e sustentam a comunidade que criamos com nossos semelhantes. São as artes do homem que é inerentemente um “animal social”.

Referências
  1. Nota do tradutor: A palavra gangsta é a forma coloquial de gangster que é utilizada para se referir a membros de organizações criminosas. O autor está se referindo ao tipo de música que exalta o crime.
  2. Nota do tradutor: Os chamados “harlequin romances” são um gênero literário desenvolvido nos Estados Unidos na década de 60. São romances feitos para o público feminino e apresentam, em regra, uma visão estreita da realidade. Centrados na vida do casal, costumam trazer destinos glamorosos e intensas emoções focadas na paixão e no processo de apaixonar-se. 
  3. Nota do tradutor: O autor usa como exemplo de composição a “fugue”; trata-se de uma composição caracterizada pela imitação sistemática de um tema principal em linhas melódicas que soam simultaneamente.

 


Rollin A. Lasseter foi editor geral do Catholic Schools Textbook Project ( Projeto de livros didáticos para escolas católicas) e autor de All Ye Lands, World Geography and Cultures (Todas as Terras, Geografia Mundial e Culturas) e The Cast of Valor (A estrutura do valor), uma coletânea de suas poesias. Ele foi membro do corpo docente de inglês da Universidade de Dallas até sua aposentadoria. O Dr. Lasseter faleceu em 2008.

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