A Odisseia em poucas palavras

Na semana passada publicamos um brilhante artigo de Joseph Pearce sobre a Ilíada. Aqueles que leram sabem que o objetivo de Peace é dar-nos as chaves de leitura do épico de Homero. O que à primeira vista parece um poema pagão sobre uma guerra entre povos politeístas é, na verdade, uma análise perspicaz da alma humana. Nas linhas de Homero descobrimos que a arrogância de Aquiles precede sua queda enquanto a dedicação de Heitor a seu país e sua família faz dele o verdadeiro herói da obra. Portanto, em nosso artigo de hoje, a Odisseia em poucas palavras vamos continuar a mergulhar nesta pergunta tão fascinante: Afinal, Como conciliar a poesia pagã de Homero com as verdades do evangelho?       

             
Joseph Pearce, Crisis Magazine | Tradução: Equipe Instituto Newman


A musa, a destruição e as consequências

Assim como na Ilíada, Homero inicia A Odisseia com uma oração à sua Musa, o espírito sobrenatural da criatividade, pedindo inspiração para contar bem e honestamente a história de Ulisses — também conhecido como Odisseu. Em seguida, ele conta que os homens de Ulisses “foram destruídos por sua própria imprudência selvagem” e, logo após, define o cenário teológico de todo o épico com as palavras de Zeus:

Caso curioso, que os homens nos culpem dos males que sofrem! Pois, dizem eles, de nós lhes vão todos os danos, conquanto contra o Destino, por próprias loucuras, as dores provoquem,

Ora, essas poucas palavras, ditas pelo pai dos deuses e dos homens, enunciam o tema principal, apresentado na história da volta tardia de Ulisses para casa. Com efeito, trata-se do mesmo tema que Homero apresenta em A Ilíada, ou seja, que as ações têm consequências e que as ações más têm consequências más. 

O sofrimento

Por mais que tentemos culpar Deus ou os deuses pelas misérias de nossa vida, o fato preocupante é que a maior parte do nosso sofrimento é consequência do nosso próprio comportamento imprudente, ou da imprudência dos outros. No entanto, Homero bem sabe que alguns sofrimentos possuem o que se pode chamar de “causas naturais”, e não têm nada a ver com as ações das pessoas. 

Esse tipo de miséria é, nas palavras de Zeus, a tristeza que é “dada”, o sofrimento que é, em certo sentido, um presente. Vê-se, portanto, que A Odisseia é uma meditação sobre o mistério do sofrimento. Todavia, é mais do que isso. É também uma meditação sobre a sabedoria que se pode adquirir com a experiência do sofrimento. É por isso que alguns sofrimentos ou tristezas são “dados”; pois permitem que a alma sofredora cresça em sabedoria e virtude.

Enquanto o sofrimento é o tema do épico, sua forma é a de uma jornada. Não é surpreendente que diversas línguas tenham incorporado a palavra “odisseia”, inspirada no épico original de Homero. Como se sabe, a palavra significa “jornada”, especialmente uma que inclua aventura ou busca. A jornada de Ulisses, sua odisseia, não é apenas uma aventura, mas uma busca para voltar para casa. No entanto, sua própria imprudência e a imprudência de seus homens o atrasam.

Os pecados

Certamente, o pecado capital de Ulisses é a soberba; foi ela que provocou a maldição de Poseidon sobre ele e seus homens. Afinal, ele empregou sua lendária desenvoltura para escapar das garras do ciclope Polifemo, alegando que seu nome era “Ninguém”. Porém, após a fuga, Ulisses [tomado pela soberba] grita para Polifemo que seu nome não era “Ninguém”, mas Ulisses de Ítaca. Depois de deixar seu cartão de visita, Polifemo lança sobre o rei de Ítaca e seus homens a maldição de Poseidon. 

Portanto, se Ulisses tivesse contentado-se em ser ninguém e abraçado a humildade, ele e seus homens teriam voltado para casa rapidamente. Da mesma forma, foi a imprudência de seus homens, que comeram o gado de Hélios, desafiando os repetidos avisos sobre as consequências de fazê-lo, que os levou à destruição.

A redenção

Assim, sem seus homens e sem seu navio, Ulisses é levado para a ilha da deusa Calipso, que lhe oferece a imortalidade caso ele concorde em case-se com ela. Diante dessa tentação muito real, Ulisses escolhe a morte e abraça sua mortalidade. 

Além disso, ele aceita os perigos e o sofrimento inerentes à renovação de sua busca para voltar para casa, para sua esposa, seu filho e seu povo. Ao escolher uma vida mortal e uma esposa mortal de meia-idade, em vez da imortalidade e do casamento com uma deusa eternamente jovem e perenemente bela, Ulisses demonstra o grande amor abnegado que é inseparável da humildade.

O retorno

Quando enfim chega em Ítaca, a deusa Atena lhe diz que ele não pode retornar em glória. Ao invés disso, ele deve disfarçar-se de mendigo e suportar o sofrimento que sua aparência de penúria lhe causará nas mãos dos pretendentes desdenhosamente orgulhosos que cercam Penélope, sua esposa. Esse cenário proporciona uma grande ironia dramática, pois até mesmo os convidados indesejados, que desafiam a vontade da família de Ulisses, e comem sua comida, se recusam a dividí-la com o mendigo [que é na verdade o dono da casa]. 

Em um nível mais profundo, no entanto, essa situação expõe os pretendentes como transgressores da sacrossanta lei da Xenia, exigida por Zeus. [A também chamada de lei da hospitalidade] ordena que o anfitrião mostre generosidade ao estrangeiro, mas também, por extensão, que o estrangeiro respeite a generosidade do anfitrião, e não abuse dela. 

De certa forma, trata-se de uma lei pagã equivalente ao mandamento de Cristo de amar o próximo. Enfim, o fato é que os pretendentes violam a lei não só ao insultar, de forma arrogante, o mendigo, mas também ao desprezar Penélope e Telêmaco, seus anfitriões impotentes. Não é de se admirar que Zeus, que é conhecido como o deus dos hóspedes, castigue tal imprudência.

O filho

Além do crescimento de Ulisses em sabedoria e virtude, por meio da experiência do sofrimento, A Odisseia também nos mostra um caminho semelhante de virtude por parte de sua esposa e filho. 

O rito de passagem de Telêmaco, de menino a homem, é a subtrama do épico. No início, ele se mostra exasperado com a presença indesejada e inconveniente dos pretendentes e deseja proteger sua mãe de seus avanços desagradáveis. No entanto, ele é fraco e nada pode fazer. Sua frustração infantil é demonstrada na maneira como ele, em “uma tempestade de lágrimas”, derruba o cetro, símbolo da autoridade que não pode exercer. No entanto, após concluir sua própria odisseia, viajando para o palácio de Menelau em busca de notícias de seu pai, ele volta para casa mais sábio e mais forte. 

No final da epopeia, ele tem força física para amarrar o arco de seu pai, indicando que agora é mais forte que os pretendentes que não conseguem fazê-lo. Entretanto, ele  também demonstra humildade quando desiste de mostrar sua força, recuando no último momento em sinal de obediência a seu pai. Ele cresceu, portanto, tanto física quanto moralmente. O menino tornou-se um homem no sentido mais amplo da palavra.

A esposa

Por último, mas não menos importante, está Penélope, cuja presença tem um poder discreto e cuja voz é a de uma virtude indomável. Tão inabalável em sua fidelidade aos deuses quanto em seu amor pelo marido, ela é um ícone de feminilidade forte e irreprimível ao lado das maiores heroínas da literatura, como Beatriz de Dante ou Pórcia e Cordélia de Shakespeare. 

Não é de se admirar que a alma de Agamenon, que havia sido assassinado por sua própria esposa traiçoeira, estivesse maravilhada com a “grande virtude [no] coração da irrepreensível Penélope”, proclamando que “a fama de sua virtude nunca morrerá [porque] os imortais farão para o povo da terra uma coisa graciosa na canção da prudente Penélope”.

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