Heitor contra Aquiles: Quem é o herói? 

Após publicar dois artigos sobre as obras de Homero (A Ilíada e Odisseia), decidimos nos estender um pouco mais na análise desse magnífico autor. Os magistrais épicos de Homero nos levam a lugares singulares em nossa imaginação e nos convidam a enxergar a alma humana com uma profundidade ímpar. Porém, será que é possível que nossa perspectiva esteja manchada pela lama neopagã do Renascimento. Será que o homem do Século XXI ainda é capaz de apreciar uma obra como A Ilíada tal qual Homero a concebeu? E mais, acaso sabemos quem é o verdadeiro herói da Ilíada, heitor ou Aquiles? 


Joseph Pearce, The Imaginative Conservative | Tradução: Equipe Instituto Newman


Quem é o herói?

Afinal, quem é o herói de A Ilíada Aquiles ou Heitor? Ou deve-se consider ambos heróis?

Para respondermos a essas perguntas, precisamos compreender o que se entende por heroísmo. Também precisamos compreender o que Homero entendia por heroísmo. Será que o entendimento grego pagão do heroísmo era diferente do nosso? E em caso afirmativo, como era diferente e será que esta diferença tem impacto na nossa compreensão da epopeia de Homero?

Embora A Ilíada tenha projetado a sua sombra por toda a extensão da civilização ocidental, desde a epopeia de Virgílio, A Eneida, à Divina Comédia de Dante e às obras de Shakespeare, o seu impacto na modernidade tem sido largamente governado pela forma como os chamados neoclassicistas do Iluminismoleram a obra.

Em certo sentido, estética e filosoficamente, pode-se ver o neoclassicismo como uma tentativa de ultrapassar a Idade Média cristã em busca de uma alternativa ao próprio cristianismo. Este processo teve início durante o final do Renascimento, quando os renascentistas se voltaram para o panteão grego em busca de inspiração, e lá encontraram uma musa neopagã, e assim a Vénus substituiu a Virgem como o novo ideal estético. (Creio que foi Ruskin quem lamentou que Veneza se tivesse metamorfoseado de uma Virgem medieval numa Vénus renascentista).

Uma visão manchada

O problema da nossa compreensão de A Ilíada não é, portanto, a sombra que lançou sobre a civilização, mas a sombra que o neopaganismo e o neoclassicismo lançaram sobre ela. É esta leitura revisionista dos clássicos que nos obscurece a visão, impedindo-nos de ver a obra de Homero como o próprio Homero a teria visto. C. S. Lewis resumiu este problema comparando o paganismo grego a uma virgem que aguarda a vinda do esposo e o neopaganismo moderno a uma divorciada que vira as costas ao casamento. Se lermos a epopeia de Homero na perspetiva daqueles que se divorciaram de toda a divindade, certamente não iremos lê-la na perspetiva de Homero.

Assim, a diferença entre a “musa virgem” dos gregos e a “musa divorciada” dos modernos pode ser vista na definição da palavra herói. A definição moderna de herói é “uma pessoa se admira ou idealiza por sua coragem, feitos extraordinários ou qualidades nobres”. Neste sentido, poderíamos considerar Aquiles e Heitor igualmente heróicos, na medida em que são admirados e idealizados pela sua coragem e feitos notáveis.

O orgulho precede a queda

No entanto, uma vez que Homero faz do orgulho e da cólera de Aquiles o tema de advertência da sua epopeia, mostrando as suas consequências nefastas na destruição tanto dos seus amigos como dos seus inimigos, é difícil perceber que Aquiles possa ser visto como possuidor de “qualidades nobres”. Muito pelo contrário! Todavia, os leitores modernos da epopeia, neopagãos ou humanistas ateus, fazendo eco do orgulho e da raiva de Nietzsche, admiram e idealizam a coragem orgulhosa de Aquiles e os seus feitos notáveis como guerreiro inigualável. São estas as suas “qualidades nobres”. O que importa é a sua força e a sua valentia. Ele é um super-herói. Um übermensch [1].

Mas será que esta leitura neopagã moderna da epopeia está de acordo com o entendimento de Homero?

A visão de Homero

Pode-se encontar uma pista no entendimento mais antigo da palavra herói, que é presumivelmente o significado da palavra que Homero teria conhecido. Etimologicamente, o grego hḗrōs significa “protetor” ou “defensor”. Ora, poderia Aquiles, por algum esforço de imaginação, ser visto como um protetor ou um defensor? Ele retira-se da luta, traindo os seus amigos e o seu povo, e é diretamente responsável pela morte de muitos gregos, incluindo o seu amigo Pátroclo. Acaso seria possível dizer que um homem assim é um herói no sentido etimológico clássico da palavra? Heitor, por outro lado, se mostra como o protetor e defensor da sua própria mulher e filho, e do seu povo.

Enfim, há uma última prova formal para corroborar a reivindicação de Heitor ao verdadeiro heroísmo. Uma vez que Homero abre a sua epopeia centrando-se em Aquiles e na sua raiva destrutiva, teria feito sentido formal terminá-la simetricamente com a morte de Aquiles, a consequência destrutiva final da sua raiva.

Em vez disso, termina com uma série de elogios ao heroico Heitor. A Ilíada começa com a recusa de Aquiles em servir como protetor e defensor do seu próprio povo, colocando-o no papel de um anti-herói, e termina com a morte heróica e o subsequente elogio de alguém que deu a sua vida como defensor e protetor da sua mulher, filho e povo. Lendo A Ilíada tal como Homero a escreveu, não restam dúvidas de que Heitor, e não Aquiles, é o verdadeiro herói.

Referências
  1. Nota do tradutor: Hitler e o regime nazista frequentemente usavam o termo Übermensch  para descrever a ideia de um ser humano superior.

Joseph Pearce é professor visitante de literatura na Ave Maria University e membro visitante da Thomas More College of Liberal Arts (Merrimack, New Hampshire). Autor de mais de trinta livros, ele é editor da St. Austin Review, editor da série Ignatius Critical Editions, instrutor sênior da Homeschool Connections e colaborador sênior da Imaginative Conservative e da Crisis Magazine. Seu site pessoal é http://www.jpearce.co.

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