Júlio César de Shakespear em poucas palavras

Talvez só se possa comparar a genialidade de Joseph Pearce com sua altíssima produtividade literária. Há autores que escrevem bem, outros que escrevem muito, mas atualmente ninguém escreve tanto e tão bem quanto este inglês radicado nos Estados Unidos. O autor possui um conhecimento vasto da literatura universal, com o qual ele nos brinda em uma coleção de artigos chamada “in a nutshell”, que em português pode-se traduzir como “em poucas palavras”. Nessa série Pearce nos entrega de forma concisa e cativante as chaves de leitura dos grandes clássicos literários. E para iniciar essa série de artigos escolhemos Júlio César de Shakespear em poucas palavras. 

Joseph Pearce, Crisis Magazine | Tradução: Equipe Instituto Newman


A peça

Júlio César destaca-se entre a maioria das peças de Shakespear por despertar uma boa porção de perguntas. Quem são os heróis? Onde estão os vilões, os malfeitores, que são tão evidentes em tantas outras peças de Shakespeare? Acaso, onde estão as mulheres? Sua relativa ausência é significativa? O que a peça nos diz sobre a política e os políticos? E o que ela nos diz sobre as pessoas? O que uma peça que mostra a arte da retórica, diz sobre a própria retórica? Se a peça deve ser considerada uma tragédia, onde há evidência de nobreza ou da falha trágica que é a ruína da nobreza? Qual é a perspectiva moral da peça?

Antes de começarmos a responder às várias perguntas que a peça nos traz, vamos dar uma olhada no contexto histórico em que o dramaturgo a escreveu. 

A proibição

Parece provável que Shakespeare escreveu a obra logo após a chamada Proibição dos Bispos ter restringido a impressão de novas peças históricas inglesas. Antes da proibição, que se tornou lei em junho de 1599 a pedido do arcebispo de Canterbury e do bispo de Londres, Shakespeare havia escrito muitas peças que retratavam episódios da história inglesa de uma maneira que satirizava sua própria época. Assim, compreendiam-se peças como Henrique IV, partes 1 e 2, Henrique V e Ricardo II como ataques velados ao regime anticatólico de Elizabeth. De tal forma que não se permitiam mais tais sátiras sob a égide da proibição. Portanto, levado a procurar mais longe o cenário de suas peças para contornar a lei, Shakespeare transferiu seu drama para o mundo antigo; Júlio César foi a primeira de várias peças ambientadas nos tempos clássicos.

Depois de situar a peça em seu contexto histórico, passemos a responder às perguntas que Júlio César nos apresenta.

As perguntas

Primeiramente, trata-se de uma peça incomum, no sentido de que não há heróis identificáveis. Enquanto Dante Alighieri coloca os inimigos de César, Cassius e Brutus, no círculo mais baixo do Inferno, na companhia de Judas, sendo devorados eternamente pelo insaciavelmente voraz Satanás, Shakespeare é muito mais sutil ao apontar o dedo da culpa. 

Ora, o próprio César está cego por sua própria arrogância, ao desprezar o aviso do adivinho de que ele deveria “tomar cuidado com os idos de março”. E essa arrogância leva César à ignorância, tornando-o cego e surdo a todos os bons conselhos, ignorando as súplicas de sua esposa e os avisos de Artemidoro e, consequentemente, levando-o diretamente à armadilha dos conspiradores.  

Os personagens recorrentes

Por outro lado, identifica-se Cassius como um puritano. “Ele não gosta de peças”, reclama César. “Ele não ouve música”. Assim, ao apresentar o personagem menos amável da peça como um calvinista mal disfarçado, inimigo do palco e inimigo da Igreja, Shakespeare emprega uma caricatura satírica que se repete em outras obras. O personagem Shylock, em O Mercador de Veneza, é outro exemplo disso, assim como Malvolio, em Twelfth Night

A saída de Shakespear

Ora, essas representações de personagens puritanos, superficialmente disfarçados de agiotas judeus, conspiradores romanos ou cortesãos renascentistas, permitem que as peças mantenham a aplicabilidade satírica que a Proibição dos Bispos tentou eliminar na Inglaterra de Shakespear. Compare, por exemplo, a descrição que César faz do puritano Cássio com as palavras de advertência de Lorenzo em O Mercador de Veneza: “O homem que não tem música em si mesmo, nem se comove com a concórdia de sons doces, é adequado para traições, estratagemas e despojos…. Não se deve confiar em tal homem”.

Embora Cassius seja claramente identificável como puritano, Brutus também está manchado com o pincel puritano em seu estoicismo hipócrita, e em seu desdém pela própria noção de monarquia. Sua recusa em ouvir o conselho de sua esposa, que poderia tê-lo feito pensar duas vezes sobre seu envolvimento na conspiração traiçoeira, ecoa a recusa do próprio César em seguir o sábio conselho de sua esposa.

O assassinato

Certamente, na esteira do assassinato de César, sentimos uma tentação de simpatizar com Marco Antônio, amigo de César, especialmente depois de termos experimentado seu brilhantismo retórico, que consegue nos colocar contra os conspiradores, ao mesmo tempo em que coloca a multidão contra os conspiradores. Somos, portanto, manipulados pelo poder da retórica para nos juntarmos à turba, enquanto ela se alvoroça pelas ruas, fazendo vítimas inocentes em sua perseguição aos culpados, como sempre acontece quando as turbas buscam a justiça. 

Porém, não demora muito para testemunharmos que ambos os lados são animados pelo cinismo da realpolitik [1], buscando meios imorais para fins supostamente bons. Logo vemos Marco Antônio, no início do Ato 4, condenando seus próprios familiares à morte e quebrando as promessas que havia feito à multidão. Além disso, ele desvia para si e seus aliados os legados que César havia deixado para o povo. Também o vemos traindo Lépido no momento em que lhe dá as costas. Quando Octavius reclama que Lépido provou ser “um soldado testado e valente”, Marco Antônio responde friamente que o mesmo acontece com seu cavalo. 

A falta de virtude

Em última análise, a característica mais marcante de Júlio César é que nenhum de seus personagens principais é particularmente virtuoso. Todavia, esse fato não é único no cânone shakespeariano. Talvez pensemos em Romeu e Julieta, em que nenhum dos personagens demonstra muita virtude, exceto pelo frade que ainda está longe da perfeição. No entanto, é incomum ver a ausência de virtude em um grau tão impressionante. 

É como se Shakespeare, ecoando as palavras de Mercúcio em Romeu e Julieta, estivesse rogando uma praga em todas as suas casas, no sentido de que ele despreza a vaidade de César, o oportunismo sanguinário de Antônio, a ambição de Cássio e o idealismo brutal de Brutus. Contudo, ao contrário de Mercúcio, ele não amaldiçoa sob a perspectiva de um cinismo mundano. Ele o faz sob a perspectiva de um cristão crente, em uma época em que os cristãos crentes eram torturados e mortos pela vaidade dos monarcas, pelos oportunistas sanguinários, pela ambição política e pelo idealismo brutal. 

O silêncio 

Há, no entanto, outro nível de significado que muitas vezes ignora-se completamente. Trata-se o som do silêncio dentro da peça; o grito no vazio do esvaziamento peça; é a voz não ouvida e não atendida do virtuoso. É a voz da esposa de César, Calpúrnia, que, se ouvida, teria salvado a vida de César; é a voz da esposa de Brutus, Pórcia, que, se ouvida, poderia ter feito Brutus pensar duas vezes sobre seu envolvimento com os conspiradores. É a voz do adivinho e dos augúrios. E, por fim, é a voz de Artemidoro, um professor de retórica, cuja nota para César é desprovida de todos os artifícios retóricos e direta ao ponto da franqueza. Entretanto, ele não lê o bilhete, não escuta a voz, e as consequências são fatais.

Tudo o que estava faltando na peça era a única coisa necessária: a voz mansa e delicada da calma que os orgulhosos se recusam a ouvir. 

Referências  
  1. Realpolitik é um sistema de política ou princípios baseados em considerações práticas em vez de princípios morais ou ideológicos.

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